Caravana
de Artesania
Diário
de Bordo
06/02/2013, quarta
Após
seis horas em viagem que separa BH de JF, onde fui recebido com sorrisos por
Cris Pena e Júnia Bessa, me juntei à Caravana que levantava voo da Escola de
Circo do Jamelão situada num bairro da periferia daquela cidade.
Tomamos
o rumo de Bicas. Na vã, uma Peugeot Boxer, Cris Pena, na pilota, Júnia
Bessa, de copiloto e os tripulantes Poliana Reis, Thiago Dorneles e Cícero,
quem lhes escreve. Pouco mais de uma hora após nossa partida numa linda
estrada com paisagem esverdejante chegamos a Tebas onde fomos recebidos
com carinho pela família de Poli. Uma recepção calorosa cheia de boas
vindas, café adoçado, tradição do interior das Gerais e broa de milho
"solada".
Para quem não sabe o que vem a ser solada, trata-se de uma expressão
para indicar que o bolo, a broa no caso, passou um pouco do ponto, perdendo
a sua fofura. Estava uma delícia. Comemos tudo e nos alojamos. Só alegria.
Saímos
para um reconhecimento (treinamento) em espaço público. Uma linda praça
com coreto e quadra de futebol nos esperava. Uma estrutura criada a partir
de um carrinho de malas metálico com duas rodinhas, já velho conhecido, duas
bandeiras, uma amarela e uma vermelha em cetim brilhante, uma mala e uma
pequena valise de couro estandartizou elegantemente o espaço agora cênico.
Cristiano,
Júnia, Poli, Thiago e eu nos aquecemos. Enquanto isso olhos curiosos
e receptivos nos seguiam. Adolescentes que ali jogavam bola se aproximaram
para saber quem eram aqueles intrusos. Thiago e Poli treinando equilíbrio
em pernas de pau, Cris em bases acrobáticas e claves de malabares, alternava
seu treinamento pessoal, ora orientando Thiago, ora Poli. Júnia com seus
bambolês e com Pena de partner, entre bases acrobáticas solo e em
dupla.
Eu (“encantador de crianças”, título imputado por Joel), com minhas flautas
fazendo o que talvez seja minha maior habilidade, relacionar com as pessoas,
mais especificamente com um grupo de adolescentes primeiro e depois,
de crianças que surgiam ávidas de todos os cantos, perguntando por tendas
e por palhaços. Era a certeza eminente de que o circo, o teatro, chegara à
cidade. A arte invadindo a pequenina Tebas. Depois de passar por vários municípios,
numa viagem que teve início em 29 de janeiro de 2013. Nosso
treinamento durou aproximadamente duas horas que passaram como um
piscar de olhos. O grupo de crianças dançou, fez pontes e massagens coletivas,
orientados ora por mim, Poli e Júnia.
Ainda nos reunimos ao cair da noite naquela praça com crianças apinhadas numa moita de arecas atrás de nós para planejar o dia seguinte. Um cortejo fanfalhático pela manhã, entre 9h30m e 11h; uma improvisação nem tanto improvisada de “A Casa Bem Assombrada” à tarde. Agora já em casa é comer, interagir um pouco com nossos anfitriões e aguardar a chegada da manhã para mais um dia, o meu segundo dia, nessa bem aventurada Caravana de
Artesania.
Dentre
tantas poiesys, afinal estamos em Tebas, uma bela frase soprada pelo irmão
de Poli a respeito de nosso cortejo de amanhã quando disse levar meia hora
para atravessar a cidade, Cris disse, só que palhaço demora! E demora porque
joga, relaciona, interage.
Daí
nos disse Joel:
-
”Ah sei, a cada passo uma brincadeira”.
E
ainda agora, enquanto escrevo este breve relato, ouço Joel dizer do alto de seus
1,80 metros:
-
“Ah mãe, e pensar que eu nunca sentei naquela praça!”
Ai,
ai, ai, quanta emoção! E amanhã tem mais!
07/02/2013, quinta de manhã
E
amanhã já hoje, dia 07/02/2013, aqui em Tebas-MG. Saiu
a Fanfalhaça tocando pelas ruas da cidade. Tchano, Biju, Ricota, Chaveirinho
e Titetê. Olhos brilhantes de todas as idades sorriam à nossa passagem.
Um curto itinerário com momentos de palhaçada, poesia, malabarismo
e magia. Se você quiser encapar seu celular ou câmera fotográfica
com um balão, pergunte ao Chaveirinho; Se você quiser dar vida a uma
flor artificial, pergunte à Ricota; agora se o assunto é poesia, pergunte pra Biju;
texto improvisado, bem passado ou ao ponto, não adie para outro ano, pergunte
para o Tchano; assim falou o Titetê, somente para você. Criançada
de todas as idades com muito riso frouxe e disponibilidade para a graça
do palhaço.
Nossa
caminhada começou na varanda da casa de Poli e acabou na Praça, ao lado
do coreto. “A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim.”
Muitos rostos já nossos conhecidos e novos até então desconhecidos. Um
convite para apresentação na Escola Estadual da cidade, uma breve conversa
sobre as impressões de cada um, uma declaração de amizade, de um
casal que passou pela garagem e nos deu parabéns pelo trabalho desejando
que Deus nos ilumine, Com eterna gratidão encaramos um delicioso almoço,
que teve seu início às 04 horas da manhã. Gratidão
especial e eterna a Ana Lúcia, mãe de Poli, quem de tudo cuidou.
Praça da cidade de Tebas-MG. 16 horas.
“O
Teatro é uma magia sem nenhum mistério.” (Amir Haddad)
Após
uma análise minuciosa de vários aspectos sobre o espaço e sua utilização
cênica traçamos um esboço para nosso roteiro de “Uma Casa Bem Assombrado”. Dentre
os aspectos abordados levantamos a importância do respeito e cuidado com
o aspecto paisagístico, gramados e plantas e sua conservação. A limpeza do
espaço tanto para cuidar como para evitar acidentes do elenco, principalmente
porque há equilibrismo em perna-de-pau e acrobacia de solo. A posição
do sol sempre dando a sombra para o público. Os elementos arquitetônicos
que podem ser aproveitados para a cenografia, planos de fuga e o
cuidado para não competirmos com elementos da natureza que sempre chamam
mais atenção e encantam que as imagens que nós atores produzimos.
Um bom exemplo é ter o mar como fundo, é difícil competir com a linha
do horizonte. Após uma discussão sobre aspectos gerais afunilamos a conversa
buscando as relações entre os aspectos gerais e os específicos, no caso
relacionando com o roteiro, a temática de nossa apresentação. Assim o objetivo
era aproveitar o que a praça oferecia para compor elementos cenográficos.
Era impossível desconsiderar o coreto central e seu imponente telhado
que nos remetido diretamente para a ideia de casa. Esse bate-papo durou
uns 50 minutos ou um pouco mais. Júnia disse ter se inspirado com as questões
levantadas e que já observava a praça de maneira diferente. Partimos
para uma conversa com intuito de amarrar o roteiro. A partir do que já havia
de vivência de outras apresentações e de novas sugestões. Havia claro para
o grupo a necessidade de inclusão dos dois novos participantes, Cícero e Thiago.
Roteiro definido fomos para a montagem de nosso cenário, adereços e técnica,
no aso o equipamento de som, ligado a um notebook. Instalamos uma cortina
utilizando a própria estrutura do coreto. Demarcamos o espaço cênico, nosso
picadeiro com um tapete redondo de lona. Nisso o público já se dispunha
nos bancos da praça e um grupo de crianças que já vinha nos acompanhando
desde ontem se sentou ao chão. Muitas pessoas espalhadas pela
praça, umas próximas outra nem tanto mas era possível sentir um elo de cumplicidade
entre nós.
Uma experiência de circo teatro. A figura do palhaço, técnicas de malabarismo, acrobacia, equilibrismo e magia. As máscara inspiradas na Comédia Dell’Arte numa encenação sem palavras. Com som mecânico ao fundo fizemos nosso ensaio aberto frente ao público que se manteve atento e presente até o final.
Dois
palhaços arrumam a casa para um proprietário solitário que se arruma em busca
de uma companhia. Ele enxota seus empregados atrapalhados que revelam
numa fotografia sua animalidade. Um mágico pintor o retrato humano embora
ele não aceite sua condição. Condição esta facilmente aceita por uma boneca
que num passe de mágica se humaniza na figura de uma bailarina. Dança
a canção. A segurança se atrapalha entre um e outro tropeço, magia, rodas
que giram enquanto a lusitana roda, os bambolês encantam, contornam corpos
voláteis numa hipnose coletiva. A autoridade solitária diz não. O jogo absurdo
dos que dizem sim apesar de tantos não assusta e transforma em Bem
aquilo que em mau se manifesta. O poder se enfeita e transforma. O humano
vence a peleja e a vontade do público é satisfeita. Os aplausos para aquilo
que era apenas um ensaio confirma esta vitória. O
riacho quer seguir seu fluxo como riacho, sem ter que se transformar em rio para
se sentir pleno e potente. Um retorno às raízes do Teatro de Rua, longe da
sina da espetacularização.
08/02/13, sexta de manhã
A
Fanfalhaça chegou na escola onde Poli estudou. Fomos recebidos pela Tia Marcinha,
professora de Poli em anos idos. Preparamos o espaço para uma apresentação
para crianças, alguns pais e poucos funcionários da pequena escola. Seguimos
um roteiro amarrado em pouco tempo, logo após o café da manhã. Para
uma platéia participativa nos colocamos a tocar. Serpenteia daqui, serpenteia
aculá, o que era uma linha reta e curta tornou-se um caminho distante
como se não chegar ao espaço cênico traçado fosse, e não é que era, nossa
grande atração, percorrer o caminho. Tchano
nos apresentou, se apresentou e Chaveirinho deu a deixa para Titetê com
sua máquina fotográfica. Ricota encantou com sua flor, Chaveirinho interagiu
convidando duas crianças como voluntárias para seus números de mágica,
Tchano dando ritmo e dinâmica cuidava dos entreatos com carinho, Biju
com seus bambolês tirou suspiros e desejos de arte na criançada. A rotina dos
quatro banquinhos fechou nossa modesta, porém grandiosa apresentação. Mais
uma vez Tchano, o gentleman, ofereceu-nos bancos para sentar preparando
a rotina que terminaria com a participação de quatro crianças da platéia.
Sob calorosos aplausos chegamos ao fim num belo cortejo pelo pátio da
escola seguidos pelos alunos e uma sessão de fotos para guardar de lembrança,
na memória muito afeto e carinho de todos aqueles olhares vivos de
sorrisos banguelas daqueles que estão em fase de troca de dentes, os de leite
por outros definitivos que ainda estão por vir. A Fanfalhaça tocou mais uma
vez! Agora,
depois da canjiquinha com linguiça que nem todos comeram, um segundo
tempo de almoço para um segundo ensaio de “A Casa Bem Assombrada”.
Vamos almoçar? Estão servidos?
08/02/13, sexta de tarde
Após
uma cesta horizontal fomos para a praça. Roda de conversa com observações
colhidas no ensaio de ontem. Preparativos necessários para iniciar
nosso segundo e derradeiro ensaio. Alguns acréscimos de adereços e necessidades
das cenas. Tudo transcorria bem até que aconteceu um corte na energia
elétrica, como “Uma Casa Bem Assombrada” depende do som
mecânico,
a encenação é muda, não há falas, todas as cenas são calçadas por músicas
de fundo. Isso é uma questão que sempre deparamos quando dependemos
de recursos técnicos externos, recursos que vão além do trabalho dos
atores. Principalmente se tratando de teatro de rua, que dependemos de luz
de terceiros ou iluminação pública das praças. Ainda bem que era um ensaio
e resolvemos o problema além de nos precavermos caso ocorra o mesmo
amanhã. O
público da mesma maneira, receptivo e presente. Foi só o sol abaixar um pouco
mais e lá estavam as pessoas querendo nos assistir. Um carro de som nas
alturas na hora da gente começar. Coisa muito comum nas cidades brasileiras,
carros com equipamentos de som tão potentes, de dar inveja em muitas
trupes e grupos de teatro que lutam pela aquisição de um sonzinho. Cris solicitou
ao proprietário do carro que abaixasse um pouco o som durante o período
de ensaio e gentilmente o possante som foi desligado. Uma gentileza urbana
rara de ser vista nos tempos atuais. Em
meio a alguns tropeços o ensaio transcorreu, ficamos contentes e certos de que
precisamos apertar alguns parafusos para nossa apresentação de amanhã.
Que venha o derradeiro dia.
09/02/2013, sábado
Café
da manhã. Uma conversa sobre princípios, a cena, o palhaço, a verdade na
cena, a mentira e a invenção, o palhaço não mente, inventa. A diversão e o prazer
de estar em cena. Passar em pratos limpos para confirmar as certezas. O
olho no olho, a confiança e compromisso. Almoço
compartilhado, feito a monte mãos, imaginem o tanto de dedos e bedelhos!
Chegamos na praça as 15h30m para a apresentação de “Uma Casa Bem
Assombrada”, às 18 horas. Cenário preparado, aquecimento concluído e começou
a chegar o público; era fácil percebê-los, com seus figurinos de público,
bem vestidos, elegantes para nos assistir com nossos figurinos também
elegantes.
Tudo
na mais perfeita harmonia. Tempos precisos sem buracos ou barrigas, concluímos satisfeitos com nossa atuação. Pelo pulsar do público, pelos aplausos
espontâneos e muitas vezes em cena aberta, a certeza de sua satisfação.
FIM escreve o mágico num tecido ora branco. Um suspiro de lamento
ouve-se vindo da platéia. A confirmação de que compartilhamos momentos
de graça, beleza, encanto e poesia. Emoções fortes num processo
de
convergência, quando dois ou mais olhares se focam num mesmo plano. Fotos
para lembrar o que jamais será esquecido por nossa memória afetiva. Comentários
e congratulações. “Nossa, como eles são organizados! Vem uma coisa
depois da outra.” “Gratidão eterna, aqui em Tebas nunca teve nada parecido.”
“Voltem sempre, minha casa estará de portas abertas!” liquida a fatura,
citando um clássico do teatro contemporâneo.
O
fato é que deixamos para trás lembranças de olhares que se cruzam e amigos,
muitos amigos. Além de selarmos nossa própria irmandade, sem prazo de
validade.
Estrada,
entre montes, vales e rios, 10/02/2013, 08h40
Cícero
Silva.